A terceira área na qual o
princípio da vida mediante a morte opera é a de missões. Apesar de o sofrimento
ser um aspecto indispensável na missão, ele é frequentemente subestimado. Portanto,
precisamos compreender sua base bíblica antes de considerar alguns exemplos
notáveis. Observe o admirável perfil do servo do Senhor nos capítulos 42 a 53
de Isaías. Seu chamado é para trazer a luz
da salvação às nações; porém, em primeiro lugar, ele deve suportar
o escárnio e a perseguição. Antes de poder “causar admiração às nações” , ele
será desprezado e rejeitado por outros e oferecerá a sua vida à morte. Douglas
Webster, no livro Yes to Mission, aborda o tema de forma convincente:
“Mais cedo ou mais
tarde, a missão leva à paixão. Nos padrões
bíblicos [...] o servo
deve sofrer [...] e isso faz a missão ser
efetiva [...]. Toda
forma de missão leva a alguma forma de
cruz. O próprio
formato de missão é cruciforme. Só podemos
entender missão nos
termos da cruz.”
Jesus tinha convicção de que era aquele que cumpriria as profecias
do Servo Sofredor e falou da necessidade do sofrimento em missões. Quando
alguns gregos foram até Filipe querendo ver Jesus, o Mestre respondeu:
E chegada a hora de
ser glorificado o Filho do Homem. Em
verdade, em verdade
vos digo: se o grão de trigo, caindo na
terra, não morrer,
fica ele só; mas, se morrer, produz muito
fruto. Quem ama a sua
vida perde-a; mas aquele que odeia
a sua vida neste mundo
preservá-la-á para a vida eterna.
João 12.23-25
Aqui, novamente, apesar de não
ser no contexto de missão, mas no de discipulado, Jesus usa a linguagem de vida
e morte, e enfatiza que a morte é o caminho para a vida. So mente por meio de
sua morte o evangelho seria expandido ao mundo gentílico. A m orte é o caminho
para a frutificação. A menos que morra, a semente permanece sozinha. Porém, se morrer,
ela se multiplica. Foi assim com o Messias e com sua comunidade: aquele que “me
serve, siga-me” (Jo 12.26). Nossa base bíblica para o sofrimento missionário
seria incompleta sem o apóstolo Paulo. Considere essa extraordinária declaração:
“De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida” (2Co 4.12). Aqui o
apóstolo ousa declarar que, por meio de sua morte, outros viverão. Ele está
louco? É isso que ele quer dizer? Sim! E óbvio que seus próprios sofrimentos e
sua morte não trarão salvação, como o sofrimento e a morte de Jesus Cristo. Em vez
disso, as pessoas recebem vida por meio do evangelho, e os que pregam o
evangelho fielmente sofrem por ele. Paulo sabia do que estava falando. A boa
nova que ele proclamava é que a salvação estava disponível para judeus e
gentios da mesma forma — somente pela fé. Isso gerou a oposição fanática dos
judeus — por isso não é exagero dizer que os gentios deviam sua salvação à
disposição que Paulo tinha de pregá-la fielmente e de sofrer por ela. Ele estava
pronto para morrer para que eles pudessem viver. A história da igreja cristã
tem sido composta por missionários ousados que arriscaram a vida por amor ao
evangelho e que, como resultado, viram a igreja crescer. Mencionarei dois
exemplos — um relacionado a uma pessoa e outro a um país inteiro.
O primeiro é A doniram Judson, de
Mianmar (antiga Birmânia). Ao pedir sua esposa Ann em casamento, ele disse a ela:
“Me dê sua mão para ir comigo para as selvas da Asia e morrer comigo pela causa
de Cristo” . Eles chegaram a Rangun em 1813 e imergiram na língua e cultura
birmanesas. Somente depois de seis anos Adoniram sentiu-se capaz de pregar o
primeiro sermão, e somente depois de sete registraram o primeiro convertido.
Ele precisou de vinte anos para traduzir a Bíblia toda para o birmanês. Também
escreveu folhetos, um catecismo, uma gramática e um dicionário inglês-birmanês,
que ainda está em uso. Seus sofrimentos foram intensos. Ele ficou viúvo duas vezes
e perdeu seis filhos durante a vida. Ele e a família eram constantemente
assolados por enfermidades. Durante a guerra anglo-birmanesa, suspeitaram que A
doniram fosse espião e ele ficou quase dois anos preso, suportando as amarras,
o calor e as condições precárias. Em 37 anos de serviço missionário, ele voltou ao seu lar, nos Estados Unidos, apenas uma vez. Apesar
disso, como resultado de sua morte e sepultamento em solo birmanês, ele
frutificou muito. No primeiro domingo após sua chegada a Mianmar, em 1813, ele
e Ann fizeram a Ceia do Senhor juntos porque não havia outros cristãos para
convidar à mesa. Entretanto, quando ele morreu, 37 anos mais tarde, em 1850,
deixou mais de 7 mil birmaneses e karens batizados em 63 igrejas. Agora,
calcula-se que existam mais de 3 milhões de cristãos em Mianmar.
O segundo exemplo relaciona-se ao
vasto país da China. Quando os comunistas assumiram o poder e todos os
missionários estrangeiros tiveram de sair, acredita-se que havia aproximadamente
1 milhão de cristãos protestantes. Hoje, estima-se que existam cerca de 70
milhões.6 C omo isso é possível? Tony Lambert escreve:
A razão para o
crescimento da igreja na China e para o
surgimento de um
avivamento espiritual genuíno em
muitas áreas tem
ligação total com a teologia cia cruz [...].
A mensagem integral da
igreja chinesa é de que Deus usa
o sofrimento e a
pregação do Cristo crucificado para gerar
avivamento e edificar
a igreja. Será que nós, do Ocidente,
ainda estamos
dispostos a ouvir? [...] A igreja chinesa [...] tem
andado no caminho da
cruz. A vida e morte dos mártires
dos anos 50 e 60 produziram
ricos frutos.
A “morte” que somos chamados a morrer como condição para a
frutificação talvez seja menos dramática do que o martírio. No entanto, é uma
morte real, especialmente para os missionários transculturais. Para eles, pode
ser a morte do conforto e da comodidade, da separação do lar e dos parentes; ou
a morte da ambição pessoal ao renunciarem à tentação de ascenderem
profissionalmente e se contentarem em permanecer num ministério servil e
humilde; ou a morte do imperialismo cultural, quando se recusam a exaltar sua cultura
herdada (apesar de isso fazer parte de sua identidade) e se identificam com a
cultura que adotaram. Dessa e de outras formas, somos chamados a “morrer” para
que haja uma vida de frutificação.
Trecho do livro “O discípulo radical” de John Stott
Capítulo 8 – MORTE
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